sábado, 15 de junho de 2013

FUTEBOLÊS

Não há raça de gente mais evasiva com as palavras do que os jogadores de futebol. São clichês em cima de clichês. Outro dia mesmo, um deles saiu com a seguinte pérola ao responder um questionamento do repórter sobre a perda de um pênalti:
- Só perde quem bate.
Até aí, não disse nada. Barack Obama, Dilma Roussef e o Papa Francisco é que não podem perder. Eles não batem. E o mais incrível é o tom de pedantismo com que a expressão é dita. Imagino se a moda pega nos outros segmentos. Imaginem o grande escritor dizendo:
- Só comete erros ortográficos quem escreve.
Ou o maior chef do mundo sentenciando:
- Só salga os pratos quem cozinha.
Ou ainda o melhor piloto de automobilismo se defendendo:
- Só bate o carro quem pilota.
Ninguém merece. Ou seria "só merece quem faz por merecer"?
Outra expressão muito comum nas bocas dos atletas é a teimosa "comigo não é diferente".
Se eles falam sobre seleção brasileira:
- Todo jogador sonha com seleção brasileira. Comigo não é diferente.
Se o assunto é titularidade na equipe:
 - Todo jogador sonha em ser titular. Comigo não é diferente.
Se uma transferência é a bola da vez:
- Todo jogador sonha em jogar na Europa. Comigo não é diferente.
Poxa. Raciocinem comigo: se todo jogador sonha, e o cara é jogador. Presume-se que com ele não pode ser diferente. Ou será que pode? Eu, hein!
E o tal "resultado positivo"?
- Vamos com tudo em busca do resultado positivo.
- Lutamos muito, mas não conseguimos o resultado positivo.
Não seria mais curto e grosso dizer "vitória"? Talvez isso não aconteça devido aos confusos regulamentos do nosso futebol, em que uma equipe pode se beneficiar com a própria derrota. Aí, pasmem, a desgraça se transforma em resultado positivo. Ou seja, acaba sendo uma expressão que pode assumir múltiplos significados. Coisas da província tupiniquim. Mas isso pouco importa, não é? Afinal, futebol é bola na rede.


Marcos Vitor






segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O PRÓXIMO!

O morro estava mobilizado em função do sepultamento do Seu Afrânio. Um baiano, forte, chegado à Cidade nos idos dos anos 60, e considerado um dos ícones daquela comunidade. O sistema de som instalado na associação de moradores anunciava, a todo momento, informações referentes ao evento. Os amigos de birosca vestiram a melhor roupa e prometiam cantar a canção preferida do falecido. Sugeriram que fosse levada a bandeira da agremiação carnavalesca local, em cujo livro de registros havia o nome do morto como um dos beneméritos. As pessoas, algumas ainda incrédulas com o passamento, desciam rumo ao cemitério. Dona Marizete, teúda e manteúda, levava na bolsa uma camisa do Cirrose Esporte Clube, orgulho do seu amado, para ser posta na urna funerária. Um ônibus fretado aguardava ao  pé da ladeira para transportar ao cemitério quem pretendia dar o último adeus àquele nordestino boa-praça. Durante o trajeto, muitas homenagens foram prestadas ao morto. Momentos marcantes foram lembrados, palavras de exaltação ao homem foram gritadas. Até que alguém se lembrou de um desejo de Seu Afrânio: quando morresse, não queria choro nem vela. Queria, sim, que as pessoas se divertissem no seu funeral. Então, ao chegarem, foram todos para um bar em frente ao cemitério. Encomendaram comes e bebes. Logo apareceram alguns instrumentos. O pagode estava formado. Mulheres sambavam em cima de suas plataformas, crianças ficavam num entra e sai frenético. Entre canções e aplausos, vários discursos surgiam. De repente, alguém alertou para a proximidade do horário do enterro. Por alguns momentos, a euforia deu lugar ao silêncio, para que todos acompanhassem o esquife. O corpo baixou à sepultura; algumas flores foram jogadas sobre o caixão. No retorno à comunidade, a sensação do dever cumprido, mas também a torcida para que logo possam ter outra festa como essa. Que Deus chame o próximo!

Marcos Vitor

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FUNK É CULTURA. TÁ LIGADO?


Ouvi dias desses, num programa de tv, que o funk fazia parte da cultura do povo brasileiro. Inicialmente, fiquei a indagar cá com meus botões se aqueles caras estavam em sã consciência ao afirmarem aquilo. Como a fonte não era das mais fidedignas, aquela asserção perdia um pouco sua austeridade. Mais tarde, com muita boa vontade, aprofundei-me nessa questão e entendi que precisava me curvar diante da tamanha veracidade.
Reflita comigo, querido leitor: somos um país com altíssimo índice de analfabetismo (notem como esse segmento ganhou ramificações. É um tal de analfabetismo funcional pra cá, analfabetismo digital pra lá, entre outros.). Verdade seja dita, temos compaixão por nossos estudantes.   Coitados! Resolvemos então facilitar as coisas para eles. Promoção: não estude e passe de ano! Somos o país onde a bunda, que abunda, relega o cérebro ao papel de mero coadjuvante no organismo humano. Somos o país onde muitos não têm o que comer, mas sentimos necessidade de nos manter informados sobre o que nossos ídolos televisivos e futebolísticos degustam ou deixam de degustar, lendo revistas Caras ou assistindo a programas de fofocas. Somos o país que não dormimos enquanto não tomamos conhecimento se nosso big brother está no paredão, esquecendo-nos que vivemos eternamente nele, fuzilados pelas mazelas e descomposturas governamentais. Somos o país da fantasia, entorpecido pelo ambiente virtual lebloniano daquela novela das 8, que começa às 9 (até no horário somos ludibriados.),  que não nos deixa enxergar o quanto vivemos encalacrados no nosso mundo real. Somos o país que vive numa eterna dúvida dominical: assistimos ao programa que falará sobre a famosa balzaquiana sarada que namora o garotão com idade para ser seu bisneto, ao que contará a trajetória da vida daquela “modelo” cujos atributos físicos ganharam conotação frutífera, ou ainda ao que “exercitará” nosso intelecto, fazendo-nos contorcer na cadeira para descobrirmos qual participante mais ronca à noite ou qual tem predisposição homossexual?
Chego à conclusão que o funk, realmente, faz parte de nossa cultura. Nossa capacidade de reflexão anda tão por baixo, que os mc´s  e os "bondes" se solidarizam conosco e nos facilitam a vida compondo canções(?) que contribuem para a manutenção de nosso constante estágio letárgico cultural. Afinal, que complexidade há em entender que “as cachorra e as popozuda senta e levanta” (ah, caro amigo, você não vai querer exigir concordância aqui, né?), ou que “a eguinha pocotó nunca anda só”.
Realmente, nada mais justo que elegermos esse fidalgo estilo musical como trilha sonora ideal para representar essa hecatombe cultural.
Tiro o chapéu para os indivíduos lá do programa, que me fizeram dispensar alguns minutos do meu precioso tempo, para pensar um pouco, até me convencer de que eles tinham “razão”. Ops! Desculpem-me. Esqueci-me de que não podemos pensar. 

Marcos Vitor

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O PURGATÓRIO SE CHAMA KOMBI


Como de costume, saio de casa atrasado para o trabalho. Chego ao ponto esbaforido após uma breve e infrutífera corrida. Perco o ônibus do horário. Além das lamentações, resta-me embarcar num transporte alternativo, que recebe o pomposo nome de Kombi. Preparo-me psicologicamente para entrar naquilo que podemos considerar a mais fiel cópia do inferno na Terra. Confesso que já gostei muito desse veículo quando criança, a ponto de tê-lo na mais singela forma de brinquedo. Mas ultimamente tenho tido má vontade com ele.
- Opa! Lá vem ela.
A frente manchada de plastic e os pneus calejados dão a exata noção do quanto a coitada já trabalhou. O parachoque desalinhado, o parabrisa, com adesivos de gosto duvidoso e carente de um dos limpadores, traz estampado o itinerário da viagem.  O cobrador, um menino de mais ou menos uns treze anos e cabelos tingidos, projeta o corpo para fora através da janela, tentando captar corajosos passageiros. O motorista, palito na boca, cara de poucos amigos, tem a grossa barriga entalada embaixo do exagerado volante da perua. Faço sinal, com mais umas três pessoas. O lotação para, abre a porta com graves sinais de desgaste. Miro bem o interior, para ver o que me reserva essa viagem. Na ponta do banco, uma senhora carrega uma enorme bolsa; no canto, um senhor obeso furta parte do lugar ao lado. Aos trancos e barrancos, consigo ajeitar-me no banco, cujas molas estão prestes a ficarem expostas. Um menino (ah, maldito!) ouve no celular, de inúmeros chips e nenhum crédito, um funk, que entra pelos nossos ouvidos sem pudor e, o mais grave, sem pedir licença. Um forte cheiro de gasolina se espalha pelo salão. O cobrador, praticamente sentado no colo da senhora ao lado, pede para que adiantemos o pagamento da passagem. Eu, cá com meus botões, pergunto-me se não seria nós quem deveríamos receber por estarmos ali pondo em risco nossa integridade física. O motorista, vira e mexe, discute com alguém no trânsito, entre uma bandalha e um avanço de sinal. Numa parada, descem dois passageiros e sobe um; na outra, descem três e sobem dois; mais à frente, apenas sobem. Desloquei-me por todos os lugares do assento. Inicio no meio, vou pra ponta, chego ao canto. Em dado instante, apoio-me com apenas uma das bandas das nádegas. Incrível como a lei da física é contrariada aqui.  Enfim, sou eu quem desce. Feliz por chegar ileso e convicto de que, se existe purgatório, ele se chama Kombi.

Marcos Vitor

terça-feira, 20 de novembro de 2012

INIMIGO OCULTO


Domingo de sol. Homens do grupamento especial da Polícia Militar ocupam uma determinada comunidade da Cidade e devolvem a dignidade aos seus sofridos habitantes. Uma criança sorri para o comboio. A dona de casa não se contenta de tanta felicidade. O aparato oficial está formado: o secretário de segurança pública discursa, sob a corroboração do Excelentíssimo Governador. Outras autoridades se aproveitam da exposição do vultoso evento. Um oficial conversa com moradores, pretendendo desfazer a imagem negativa que há muito norteia essa relação.
Além da ocupação policial, ainda há a promessa da ocupação social. Tudo muito perfeito. Não é?
Eu diria:
- Quase tudo.
Após a pacificação nas comunidades, falta a pacificação no Governo. Assim como aqueles que vivem à margem da lei (leia-se: traficantes) roubam a dignidade dos residentes das favelas, o Governo rouba a dignidade de toda a população. Rouba-nos o direito à saúde plena, rouba-nos o direito à educação de qualidade, rouba-nos o direito à segurança, rouba-nos o direito a melhores salários, rouba-nos a alegria de viver. Literalmente nos toca o terror. E o mais grave: tudo sob a chancela oficial. Ocupação no governo. Urgente! Não consigo enxergar tanta diferença entre marginais, propriamente dito, e políticos corruptos. Pelo menos, os primeiros são inimigos declarados. 


Marcos Vitor

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A VIDA. ESSA COMPETIÇÃO DIÁRIA.


Dê a mão à palmatória aquele que, em dado momento da vida, não se viu diante de um momento em que precisou competir por algo. Aliás, leitor, não se esqueça de que você só está lendo essas linhas porque venceu a primeira competição da qual participou. Espermatozoide, fecundação, óvulo... Refresquei sua memória? Pois é! Porém, não há competição mais desumana, mas não menos cômica, que aquela cuja premiação é um merecido descanso num assento do trem para Japeri, após um árduo dia de trabalho. Você não está entendendo? Eu explico: é necessária uma luta danada pra conseguir se sentar nos nada confortáveis assentos dos trens da Supervia. Essa é uma disputa diária que requer do atleta, digo passageiro, destreza e habilidade. Chego na gare da Central do Brasil no fim da tarde, como se estivesse chegando num estádio. Compro minha “credencial” na bilheteria, o que me habilita a participar desse jogo de sobrevivência. Observo ao redor para ter uma noção sobre o que me aguarda. Avalio a quantidade e, logicamente, também a qualidade dos meus oponentes. Afinal, preciso mensurar o tamanho da minha dificuldade. Na estação, vejo que, na posição da primeira porta do trem, o buraco é mais embaixo. Há, entre vários obstáculos, um negão com uns dois metros de comprimento jurando sentar a qualquer custo, um homem com dois sacos plásticos enormes, onde era possível ver artefatos de madeira ou coisa parecida, um grupo de quatro rapazes, que intentava reservar lugar onde pudessem jogar buraco até a estação de destino. Enfim, o negócio ia ficar estreito. Corro pra posição da segunda entrada, em que , à primeira vista, parece-me ser menos dura a batalha. Posiciono-me bem no meio do bolo de competidores. Fico com a cara colada às costas de uma mulher de uns cento e cinquenta quilos, na esperança de aproveitar seu vácuo rumo ao objeto de desejo. Um homem, bêbado, cantarola e gesticula, abrindo esporádicos espaços que tento aproveitar na multidão. O trem embica no início da plataforma. Começa o rebuliço na estação. Os competidores estão em alvoroço. Vou pra lá e pra cá, ao sabor da grande onda humana, na esperança de finalmente poder descansar de mais um dia de labuta. A composição estaciona e abre as portas. A tsunâmi me arrasta para dentro do vagão que, num estalar de dedos, já está lotado. Como um joão-bobo, fico sem rumo, impotente e nocauteado. O que me sobra são apenas centímetros cúbicos em que posso me posicionar de pé. Sinto-me derrotado. Mas sei que perdi apenas uma batalha. A guerra? Ah, essa está longe de ser decidida.

Marcos Vitor